António Cluny –
jornal i, opinião
As políticas que
ferem a dignidade da pessoa humana merecem pois a sua crítica clara e
intransponível
Num estudo recente
(2013), intitulado "La Revoluzione della Dignitá", Stefano Rodotà, um
prestigiado jurista e político italiano, chama oportunamente a atenção para o
conceito de dignidade da pessoa humana.
Da constituição
italiana de 48 à Constituição alemã de 49 que o conceito de dignidade da
pessoa, e não apenas o do sujeito abstracto de direitos, passou a constituir o
fundamento constitucional da acção política democrática.
A Constituição
alemã refere: "A dignidade humana é intangível. É dever de todo o poder
estatal respeitá-la e protegê-la."
A Constituição
portuguesa estabelece, também enfaticamente, o mesmo princípio e os
constitucionalistas são unânimes na afirmação de que ele constitui um
pressuposto essencial da legitimação da vida política da República.
Este conceito de
dignidade humana não se reduz, todavia, ao respeito por parte do Estado (ou de
outros poderes) pela liberdade ou pela igualdade abstracta de cada pessoa,
convertendo-se também no reconhecimento de que, a cada uma delas, devem
assistir, para tanto, condições susceptíveis de assegurar uma vida material e
culturalmente decente.
Mais: a justa
medida dessas condições não se resume ao reconhecimento de um mínimo essencial
à sua sobrevivência, assumindo verdadeiramente o direito a um conjunto de meios
materiais e culturais que permitam estar livremente em sociedade, num plano de
dignidade igual à dos demais cidadãos.
As políticas que
estas constituições consentem são portanto as que podem dar expressão a uma
transformação da realidade que tenha como objectivo a qualificação da sua
condição de pessoas: a sua dignidade humana.
Ou, como explicita
o insigne jurista italiano, "o princípio da liberdade conjuga-se com o da
igualdade para evitar discriminações ou estigmatizações sociais".
Toda a actividade
política tem assim, obrigatoriamente, de emanar do cumprimento desse desígnio,
devendo as leis que lhe dão corpo ser apreciadas em função do seu maior ou
menor afastamento desse fundamento.
Rodotà, ao
caracterizar o conceito de dignidade, refere que, nesta perspectiva, "o
sujeito abstracto encarna a pessoa concreta", tornando-a irredutível à
condição de objecto ou variante do mercado.
Rodotà é um homem
que se expressa politicamente na área da esquerda.
Num palco outro e
mais vasto, ouvimos entretanto o Papa Francisco manifestar sobre realidade
actual: "A alegria de viver desvanece-se frequentemente; crescem a falta
de respeito e a violência, a desigualdade social torna--se cada vez mais
patente. É preciso lutar para viver, e muitas vezes viver com pouca
dignidade." E acrescenta: "O ser humano é considerado, em si mesmo,
um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora [...] Já não se trata
simplesmente do fenómeno da exploração e da opressão, mas de uma realidade
nova: com a exclusão, fere-se na própria raiz a pertença à sociedade onde se
vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está dentro
dela, mas fora. Os excluídos não são explorados, mas resíduos, sobras
("Evangelii Gaudium").
As políticas que
ferem a dignidade da pessoa humana merecem pois a sua crítica clara e
intransigente.
O Papa e Rodotà
terão porventura chegado às mesmas conclusões por vias diferentes. A realidade
que abordam é a mesma.
São homens de boa
vontade e podem por isso entender-se e fazer-nos entender na defesa conjunta da
dignidade da pessoa humana: de toda e qualquer pessoa. De toda a humanidade.
Jurista e
presidente da MEDEL - Escreve à
terça-feira