Quando João de Deus
Pinheiro abandonou o cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros, sendo chutado
para a Europa e terminando assim a sua carreira política nacional, o seu
ambicioso secretário de Estado da Cooperação, entrado na política com o alto
patrocínio de Santana Lopes, teve, na sombra, um papel decisivo. Chegou a
ministro, uns anos mais tarde a líder do PSD e, graças à inesperada demissão de
Guterres, a primeiro-ministro.
A história deu ao
ex-maoista Durão Barroso uma dessas oportunidades históricas que muda a vida
dum homem. George Bush precisava de exibir os seus aliados europeus na
injustificável ocupação do Iraque que se preparava, baseada num conjunto de
mentiras. Aznar e Blair foram os únicos que aceitaram participar numa encenação
que pretendia esconder o quase absoluto isolamento dos EUA nesta aventura. Era
necessário um palco longe do mais que seguro protesto popular - uma ilha era o
ideia -, onde houvesse uma base militar americana que garantisse a segurança do
presidente - as Lajes, perdidas no meio do Atlântico, eram excelentes -, num
país com pouca relevância política e militar - Portugal encaixava - e com um
governo disposto a oferecer a sua imagem a uma guerra absurda só para mostrar
serviço. Para o primeiro-ministro português, era a oportunidade de aparecer na
fotografia, mesmo que apenas como mordomo - na maioria das fotos publicadas nos
principais jornais internacionais ele ficou de fora. E foi nesse momento, pela
porta de serviço, que Barroso conseguiu o sonho de qualquer bom mordomo: ser
igual aos senhores que bajula.
Quando foi preciso
escolher um presidente para a Comissão Europeia, as potências europeias
procuraram alguém que, pela sua irrelevância política, não viesse a ser um
perigo para o poder alemão e francês. Como segunda ou terceira escolha,
encontraram o primeiro-ministro que tão bem recebera nas Lajes. A posição que
tivera sobre o Iraque era indiferente. O que contava era a sua disposição para
moldar todas as suas convicções aos interesses de quem pudesse alimentar as
suas ambições. Ao contrário doutros, Barroso aceitou interromper o seu mandato
no governo português, entregando o poder ao seu companheiro Santana Lopes.
Chegado a Bruxelas, não desiludiu. Até do apelido que sempre usara (Durão), por
não ser de pronuncia conveniente, ele abdicou.
Em Portugal, muitos
foram os que apelaram ao provincianismo nacional, dizendo que viria a ser
benéfico para Portugal ter um português a presidir a Comissão. Isso
dificilmente seria verdade, se o presidente cumprisse a sua função, que era a
de zelar pelos interesses da Europa e não dum Estado em particular. Mas
seguramente não aconteceria com Barroso. Ele trabalharia para quem tem poder e
as suas origens seriam a ultima das suas preocupações. O mordomo interioriza os
valores dos seus senhores e quase sempre se envergonha do lugar de onde vem. O
seu orgulho é servir. Por isso mesmo Barroso foi o líder europeu mais arrojado
(mais do que a própria troika ou FMI) na pressão ao Tribunal Constitucional
português. Alguma vez Barroso se atreveria a dizer coisas semelhantes sobre o
sempre ativo Tribunal Constitucional alemão?
A última vez que
José Manuel Barroso mostrou a sua vontade de servir quem manda foi na semana
passada. Perante a abertura de um processo de análise à Alemanha, obrigatório
por esta ter ultrapassado os excedentes comerciais permitidos pelos tratados
(6,5% em vez de 6%), o presidente da Comissão tentou diminuir o alcance daquilo
que parecia um acontecimento interessante: as regras europeias também se
aplicam à Alemanha, ideia peregrina que causou algum incómodo em Berlim.
Barroso desfez-se em desculpas: "Isto não deve ser entendido como se a
Europa estivesse contra a competitividade da Alemanha. Pelo contrário, é muito
bom para a Alemanha e para a Europa, sendo a sua maior economia, que a Alemanha
se mantenha como um país tão competitivo e níveis de exportação e crescimento
destes. Se posso dizer, gostaríamos até de ter mais 'Alemanhas' na
Europa".
Apesar da Alemanha
fingir que não o compreende, ninguém terá de explicar a Barroso o absurdo deste
desejo. Por um lado, os excedentes comerciais alemães, pelo menos na proporção
dos últimos anos, criam uma pressão para a valorização do euro, o que é uma
tragédia para muitos países europeus, impedindo qualquer ajustamento económico.
Ou seja, são, para o euro, um problema tão grave como o oposto. Por outro, o
mercado interno europeu não é compatível com excedentes nacionais destas
dimensões. Por uma razão simples: para alguém vender é preciso que alguém
compre. Como nenhum Estado europeu pode abdicar do enorme mercado em que está
integrado, se todos decidirem que só vendem e poupam, a economia paralisa e
ninguém vende nem poupa. Este excedente comercial alemão, é sabido, é, a par da
absurda arquitetura do euro, um dos maiores problemas económicos atuais da
Europa. Que, como avisaram já tantos economistas, ou é rapidamente resolvido
(através do fim da política de contenção salarial, inibidora do consumo, há
anos imposta aos trabalhadores alemães) ou destruirá o euro, a União Europeia
e, por consequência, a própria Alemanha. Tratar, como Barroso tratou, esta
questão como um mero pormenor técnico diz tudo sobre a forma como as
instituições europeias há muito desistiram de representar os interesses de toda
a Europa.
Esta vergonha em
tentar que a Alemanha, por uma vez, cumpra os tratados que impõe aos outros,
que em tudo contrastam com a vigorosa chantagem sobre os juízes do
Constitucional português, são o retrato da Europa e das suas instituições.
Barroso, pela sua fraqueza de princípios, pela ausência de coragem política e
pela sua subordinação ao poder dos mais fortes é, ele mesmo, nas funções que
ocupa, um retrato do estado da União. Diz-se que, depois de ter abandonado o
País por um melhor emprego, quer regressar para ser eleito Presidente da
República portuguesa. Tal desejo só me deixaria muito espantado se não olhasse
para Belém e não encontrasse lá um dos poucos políticos que ultrapassa Barroso
na subordinação de todos os valores à sua própria ambição pessoal. Mas, mesmo
assim, até esta direita, deprimida com o estado em que os dois partidos que a
representam estão a deixar o país, é capaz de encontrar melhor do que isto.