Rui Peralta, Luanda
I - A Frente
al-Nusra, um bando armado fascista islâmico, que combate o governo sírio,
declarou a sua lealdade ao líder da al-Qaeda, Ayman al-Zawahiri e aceitou a
fusão com o grupo iraquiano desta organização, liderado por Abu Bakr
al-Baghdadi, com o objectivo de, combater por um califado que integre a Síria e
o Iraque. A declaração foi feita via rádio pelo líder da Frente al-Nusra, Abu
Mohammed al-Julani. A Frente al-Nusra e o grupo iraquiano de al-Baghdadi
aguardam que al-Zawahiri designe um emir, para dirigir o novo grupo.
Muitas figuras da
oposição síria, como o líder da Coligação Nacional Síria (CNS), Moaz al- Jatib,
criticaram o papel da al-Qaeda, exigindo distanciamento face á Frente al-Nusra,
enquanto outros grupos consideram que as declarações de al-Julani são
prejudiciais para oposição e que podem comprometer os apoios internos e
externos de que a oposição síria goza. As críticas mais duras vieram dos
Comités de Coordenação Local (CCL), que rechaçam este acordo.
As divergências na
oposição síria continuam evidentes. A CNS mantem fortes divergência políticas e
estratégicas com os CCL. Esta nova fissura, provocada pela al-Qaeda, que
confirma desta forma a sua autonomia no terreno, provoca mais uma fonte de
divergências.
A Frente al-Nusra
nos últimos tempos tinha jurado obediência ao CNS, apoiado pelos Estados do
Golfo e pela OTAN, embora colaborasse no terreno com o CCL, formado por
exilados políticos de esquerda (Baas Democrático e Socialista, Partido
Comunista dos Trabalhadores Sírios e outras organizações de esquerda), com
forte representatividade no movimento estudantil.
Com proclamação da
Frente al-Nusra, a divisão entre o CNS e o CCL ganha nova dimensão retórica,
com o CNS a acusar o CCL de extremismo e de sectarismo e o CCL a acusar o CNS
de dar cobertura á al-Qaeda, através dos apoios da OTAN e dos Estados do Golfo
(o que não anda longe da verdade).
II - Dois anos de
instabilidade politica e de ingerência externa, já provocaram mais de setenta
mil mortos, segundo a ONU. A Human Rights Watch (HRW), sediada em New York,
acusa a Força Aérea Síria de ter provocado, com os seus bombardeamentos
indiscriminados, mais de quatro mil e trezentos mortos, entre a população
civil, desde o Verão passado e acusa o governo sírio de crimes de guerra.
Uma equipa da HRW,
dirigida por Ole Solvang, inspecionou 52 localidades a norte do país e
documentou 59 ataques perpetrados pela Força Aérea Síria. Na maior parte dos
ataques, os aviões sírios não tinham alvos militares, mas civis, bombardeando
hospitais, padarias e mercados. Até ao momento as autoridades sírias não
comentaram este relatório da HRW.
As forças
oposicionistas controlam, agora, grande parte do norte do país e capturaram a
sua primeira capital provincial, Raga, para além de muitos distritos de Alepo e
algumas infraestruturas chave no Este, como campos petrolíferos e represas no
rio Eufrates. Nestas regiões controladas pelos grupos armados é frequente
verificar os mercenários islâmicos da Al-Qaeda, facilmente diferenciados dos
outros grupos pelo seu equipamento e armamento.
III - Na ânsia de
acelerar o processo de decomposição do regime sírio, a OTAN e os Estados do Golfo
não olham a quem combate Bashar. Embora o CNS seja a organização reconhecida
pelos USA e restantes súbditos da OTAN, esta é uma organização completamente
ineficaz no terreno. Carregada de divisões internas e manipulada pelos Estados
do Golfo, o CNS é um pântano lamacento, formado, maioritariamente, por gente
que apenas pretende tomar conta do negócio, mesmo que isso implique serem
funcionários assalariados dos USA, dos Emiratos, da Arábia Saudita ou da OTAN,
patrões beneplácitos que permitem que os seus empregados sírios, invistam o seu
pé-de-meia.
A dúvida é se
existirá algum negócio em pé, depois da destruição a que o país está a ser
submetido. E é nesse ponto que os negociantes do CNS começam a levantar,
timidamente, a voz, alarmados com as veleidades dos seus patrões ocidentais e
dos emires do Golfo.
A Frente al-Nusra,
quando surgiu, negava as suas ligações á al-Qaeda (o que produzia sorrisos em
toda a gente, pois era do conhecimento publico que foi criada e financiada pela
Al-Qaeda, sendo os seus compadres iraquianos quem os instruiu e forneceu
quadros, armas e quais os objectivos a cumprir). Mas hoje já pode proclamar,
abertamente, não só a sua adesão ao terrorismo fascista islâmico, como o
objectivo final de destruição da soberania nacional Síria, absorvida pelo
Estado Islâmico do Iraque, recriando um histórico califado da região.
Curioso como a nova
cartografia imperialista passa pelo recuperar da memória cartográfica,
recorrendo aos califados e protectorados…
IV - Mas as
aldrabices, vigarices e outras pulhices do Capital neoliberal, não ficam por
aqui. Existe uma coisa, que no Ocidente e na indústria mediática global é
considerado um ponto de referência sobre a situação na Síria. Todos os
manipuladores de opinião, quando querem abrir a boca para falar sobre a Síria,
recorrem a essa coisa, denominada pomposamente de Observatório Sírio pelos
Direitos Humanos, que afinal nem é um Observatório, nem é sírio e muito menos
preocupado com os Direitos Humanos.
A tal dita coisa é
uma operação de propaganda, operada por um só homem: Rami Abdul Rahman, um
sírio residente em Coventry, Inglaterra, que já passou por três períodos de
prisão na Síria, (por activismo pró-democracia, conta o próprio) e que fugiu
para a Grã-Bretanha, chegando às terras de Sua Majestade, no ano 2000, no mesmo
dia em morreu Afez al-Assad, o anterior presidente sírio, pai do actual
presidente Bashar al- Assad. O Abdul do Observatório viu a sua informação ser
digerida pela ONU, que utiliza o Observatório caseiro do Abdul, como fonte de
informação sobre o que se passa na Síria, segundo afirma o New York Times (mais
valia o homem ter um jornal de parede em Coventry, que poderia ser lido por
qualquer agente do MI5 e devidamente reportado á ONU).
Mas não é só a ONU,
que utiliza esta “importante fonte”. Em Washington, os analistas militares
utilizam os serviços do Abdul para contar as baixas do exército sírio e dos “rebeldes”
e para avaliar o desenvolvimento da guerra, na frente interna. Casa Branca, ONU
e organizações dos Direitos Humanos, todos examinando de forma minuciosa a
informação do Abdul. Mas também as cadeias televisivas, os serviços noticiosos,
a imprensa escrita, a rádio, enfim toda a indústria mediática vai beber á fonte
do Abdul, em Coventry.
Rami Abdul Rahman,
de 42 anos, tem o seu “Observatório Sírio” financiado pela União Europeia (nem
mesmo a crise bloqueou as verbas para o Abdul de Coventry) e tem uma parceria
privilegiada com o governo de Sua Majestade Britânica. Para ter mais alguns
trocos no bolso, o homem ainda possui mais duas lojas de pronto-a-vestir, que
isto o melhor é diversificar, não vá acabar a guerra na Síria e o Abdul fica,
literalmente a chuchar no dedo. Assim a roupa já evitará que ande feito num
maltrapilho e sempre dá para cobrir do frio e para uma bucha diária.
V - Abdul Rahman
não é caso único. As capitais ocidentais estão cheias de “lutadores pelas
causas dos Direitos Humanos” de países das periferias, países possuidores de
recursos naturais de importância estratégica no mercado mundial, ou de países
que simplesmente se recusem a aplicar nas suas fronteiras o desígnio da “economia
única, pensamento único”. É assim que encontramos, hoje, nos USA e na Europa os
mais perfumados personagens, vindos do Irão, da Síria, de Cuba, da Venezuela,
da Bolívia, de qualquer lado onde haja algo que interesse, ou de países que
tenham optado por vias diferentes de desenvolvimento,
Nas cidades
europeias e norte-americanas, estes personagens ilustres (que nunca ninguém viu
em lado algum, a começar pelos seus conterrâneos), vivem exílios dourados, com
financiamentos e outros benefícios, a troco de fabricarem factos e de
inventarem ocorrências. É uma comunidade
constituída por uma fauna sui generis, merecedora de investigação sociológica
(talvez mesmo sociobiológica e com a participação de especialistas em
psicologia comportamental), que pulula pelas capitais da Europa e dos USA, são
recebidos pelos altos dignatários do Ocidente e gozam de uma política de portas
(e carteiras) abertas.
Vejamos dois
exemplos desta fauna (prometo que não vou referir os Rafael Marques, os
Agualusa, os do Protectorado e outros espécimes políticos da fauna e da flora
angolana): durante a guerra do Iraque Washington e Londres abrigaram o
iraquiano Rafid al-Janabi, conhecido por “Curveball”. Rafid confessou
abertamente, no ano passado, que afinal as armas de destruição iraquianas foram
uma invenção sua, com o objectivo de envolver os serviços secretos ocidentais
no assunto e assim provocar a queda do regime iraquiano. Também o menos
conhecido Sliman Bouchuiguir, da Líbia, que liderava um grupo de Direitos
Humanos em Bengasi, proclama aos quatro ventos que as historias sobre as
atrocidades de Kadhafi foram inventadas, para dar á OTAN o argumento necessário
para a intervenção.
VI - As campanhas
mediáticas contra a Síria têm nos últimos dias realçado a utilização suposta de
armas químicas, por parte do governo sírio, contra as populações das zonas
ocupadas pelas oposicionistas. A receita do imperialismo é sempre a mesma. Os
primeiros bombardeamentos são sempre mediáticos. A indústria mediática fala da
Síria vezes sem conta, das atrocidades do regime, dos atropelos, da oposição,
mas nunca refere uma única linha, uma única palavra sobre a realidade síria,
sobre as forças politicas que compõem a oposição a Bashar, nem muito menos
sobre a legitimidade do governo sírio, em termos de soberania nacional e
popular.
A Síria tem uma
Constituição, um parlamento, partidos políticos e procedimentos institucionais
similares ao de qualquer regime democrático do Ocidente. Tem como presidente um
filho que sucedeu ao pai, tal como aconteceu com os USA, mais que uma vez na
sua História presidencial, ou acontece na classe politica da Europa Ocidental,
como por exemplo com a família Papandreou, na Grécia, ou com a família Soares
em Portugal, para citar apenas dois casos entre milhares.
Que o regime sírio
não tenha a abertura democrática e as liberdades dos regimes ocidentais, é um
facto evidente, mas comporta mecanismos constitucionais para tal. Que a
contestação ao regime é legítima, também é evidente. É legítima e necessária,
pois só a mobilização popular pode obrigar ao cumprimento dos mecanismos
constitucionais sírios. Mas estas são questões que o cidadão ocidental
desconhece por completo. Ele é bombardeado, sistematicamente, com a ideia de
que a Síria é um país de desgraçados e de miseráveis, que sofrem na pele as
atrocidades de um regime sanguinário, dominado pela família al-Assad.
A indústria
mediática e os serviços de inteligência do Ocidente pintam a realidade síria de
forma pouco elaborada. Apresentam os bandos armados como combatentes da
liberdade, mas nunca passaram uma imagem, nem os seus manipuladores de opinião
(que falam diariamente nos noticiários televisivos), gastaram uma palavra que
fosse sobre as grandes manifestações de contestação ao regime e que estiveram
na origem daquele que poderia ter sido um importante movimento popular sírio,
adverso á corrupção da camada burocrática do regime e às reformas económicas
impostas pelo FMI e Banco Mundial.
Em vez disso,
apagaram por completo essa página da História e limitam-se a apresentar os
bandos de fascistas islâmicos da al-Qaeda como combatentes democráticos e os
oportunistas residentes no Ocidente, como porta-vozes do povo sírio. E ninguém
fala das verbas gastas nestas manipulações, isto numa altura em que a União
Europeia vive uma crise atroz, que coloca em causa o sistema público universal
e gratuito de saúde e que o ensino público sofre um ataque sem precedentes, que
poderá levar á sua extinção, beneficiando o negócio da educação, controlado
pelos merceeiros semianalfabetos do capital. Ou seja não há dinheiro para
investir nos direitos básicos de saúde e da educação, mas há dinheiro para
esbanjar com a ingerência nos assuntos internos das periferias.
VII - O artigo
publicado no New York Times sobre o “Observatório Sírio”, ou a declaração da
Frente al-Nusra, não vão alterar nada no actual panorama mediático. As fontes
da manipulação estão criadas e a máquina está bem oleada. Até porque a Síria
não é um objectivo, é apenas um meio para atingir um fim muito mais vasto, que
tem na Ásia Ocidental e no continente africano os palcos operacionais fulcrais
do actual momento, antes de prosseguir para as restantes áreas continentais das
periferias.
É que a nova ordem
global ainda não definiu o novo centro financeiro. O actual centro, localizado
na Wall Street, procura manter-se, enquanto a escolha da nova casa ainda não
estiver decidida. Até lá é ir redesenhando velhos mapas, selecionar parceiros,
criar guerras para fazer circular os capitais excedentes e continuar o jogo.
São as reformas
estruturais em curso…
Fontes
New York Times; A
Very Busy Man Behind the Syrian Civil War`s Casualty; April, 13, 2013
Associated Press,
April, 11, 2013
Human Rights Watch;
Syria Reports; HRW, 2013, New York