Rui Peralta, Luanda
I - Em Kerala,
India, o movimento das mulheres reflecte o sistema de valores, as
reivindicações e os métodos mobilizadores das diversas correntes feministas. A
corrente socialista, longe de ser maioritária, tem em Kerala um grande número
de militantes e simpatizantes. A organização das mulheres do Partido Comunista
da India – Marxista (CPI-M) é a única organização feminina em Kerala que de
forma persistente, se implementou, contando com um longo historial de luta.
O capitalismo BRICS
na India é caracterizado pela emergência das normas patriarcais e tradicionais,
com formas modernas. Em Kerala são estas as normas que dominam as relações
politicas, económicas e sociais. Apesar disso as mulheres aumentaram o seu grau
de participação na vida politica e económica de Kerala. A decisão do anterior
governo da Frente Democrática das Esquerdas (LDF) - uma coligação que englobava
o PCI (M) e vários partidos de esquerda e que governou em Kerala no período de
2006 a 2011- de aumentar a participação das mulheres nos órgãos locais foi
correspondida com um movimento entusiasta de mulheres, que candidataram-se aos
mais diversos cargos da administração local, o que é hoje uma nova realidade em
Kerala.
Ao retomar o poder,
a direita em Kerala – a Frente Democrática Unida (UDF) - reverteu o processo de
descentralização e burocratizou os programas de desenvolvimento, revendo, em
baixa, as verbas atribuídas ao Plano para a Missão Estatal de Erradicação da
Pobreza (Kudumbashree). Estas medidas provocaram uma reacção das organizações
femininas que iniciaram uma campanha - dirigida pela Associação das Mulheres
Democráticas da Índia (AIDWA), próxima ao PCI (M) – de protesto, contra esta decisão
governamental. A campanha durou toda a primeira semana de Outubro de 2012 e
desenrolou-se em Thiruyananthapuram, capital do Estado de Kerala.
As activistas
sitiaram sedes distritais do governo estadual e o governo cedeu, assinando um
acordo com as organizações femininas, atendendo as reivindicações femininas
(restabelecer o Kudumbashree, que em malabar – a língua da região – significa
prosperidade da família, não realizar cortes nos programas de assistência e
aumentar as verbas destinadas aos programas de erradicação da pobreza em
Kerala). Esta vitória coloca em primeiro plano a especificidade das lutas das
mulheres em Kerala e a articulação entre as reivindicações do género e de
classe.
II - A Kudumbashree
iniciou as suas actividades em 1998, como uma rede comunitária que trabalharia
em coordenação com os governos locais descentralizados do Estado de Kerala,
para a erradicação da pobreza e aumento da capacidade interventiva das
mulheres. É um programa conjunto do Governo de Kerala e do Banco Nacional para
a Agricultura e Desenvolvimento Rural (NABARD). O conselho de administração é
presidido pelo ministro de Estado de Kerala para as administrações locais
descentralizadas, assistido por um Director-geral e pelas representantes
coordenadoras de cada distrito.
Os grupos de
autoajuda da Kudumbashree nas localidades e município organizam-se em grupos de
vizinhas (NHG) que enviam as suas representantes às sociedades de
desenvolvimento a nível de bairro (ADS) que por sua vez enviam representantes á
Sociedade de Desenvolvimento Comunitário (CDS). Actualmente existem cerca de
duzentas mil NHG, vinte mil ADS e mil CDS. O número total de mulheres
participantes nesta rede é de cerca de 4 milhões. As CDS têm um importante
papel nas actividades de desenvolvimento que vão desde os estúdios
socioeconómicos até á gestão comunitária e á auditoria social. Todas as aldeias
e municípios têm várias unidades Kudumbashree, que é hoje, indubitavelmente, em
Kerala, um modelo integral de desenvolvimento económico e social e um mecanismo
participativo das mulheres. A rede engloba ainda um observatório sobre a
opressão da mulher, o Jagratha Samithi.
A rede Kudumbashree
tornou-se o mais forte grupo institucional e o melhor organizado, entre os
diversos colectivos de âmbito local, surgidos durante o processo de
descentralização administrativa estadual. O seu vínculo às estruturas
administrativas do Estado de Kerala, a forma participativa como as decisões são
tomadas e qualidades como o trabalho voluntário e a automobilizarão, levaram a
que se convertesse na instituição mais desenvolvida do governo estadual de
Kerala, baseada na mobilização a nível comunal. A sua eficácia na mobilização
das mulheres pobres e a forma de actuação junto a estas, criando espaços
comunais compartindo os pátios das suas casas é um factor digno de menção.
III - A
participação como eixo da descentralização foi contribuição do governo LDF de
1996 – 2001, ao lançar o Plano de Campanha do Povo. O governo anterior (1991 –
1996), da UDF, desempenhou um papel relevante nas emendas constitucionais que
permitiram a descentralização administrativa em Kerala, mas o governo LDF
introduziu reformas institucionais de grande envergadura e assegurou a
engenharia financeira necessária ao prosseguimento do plano e esboçou a
estrutura do Kudumbashree, baseado no equilíbrio entre a iniciativa comunitária
e o papel do Estado.
O governo seguinte
(2001-2006) foi da UDF e reverteu o processo de descentralização, em nome do
combate á guerrilha maoista. Realizou acentuados cortes financeiros e bloqueou
o projecto de desenvolvimento. O Kudumbashree prosseguiu, no entanto, como um
fórum para o corporativismo e os microcréditos. Em virtude do conceito de
autoajuda ser um dos clichés do discurso neoliberal, o governo UDF, dirigido
pelo Partido do Congresso, não desmantelou a rede e considerou que esta poderia
ser utilizada para diminuir os custos dos programas sociais e das investigações
a efectuar. De forma irónica o governo permitiu o prosseguimento do projecto,
apresentando-o como um exemplo de “sucesso” e de “desenvolvimento selectivo.”
O LDF, liderado
pelo CPI (M) sabia a importância da rede nos grupos de autoajuda das mulheres e
do papel que desempenhava na formação da cidadania politica. Assim, o governo
LDF de 2006 – 2011, tomou medidas para ampliar e fortalecer os grupos de
autoajuda de mulheres através da descentralização financeira e criando novos
estatutos. Esta medida aumentou o financiamento público ao projecto, quer de
forma directa, quer através da banca pública, permitindo que o sistema de
microcrédito prosseguisse incólume e livre das armadilhas e vigarices da
especulação.
O então ministro de
estado das finanças do governo de Kerala, Thomas Isaac, descreveu, durante a
apresentação, o orçamento geral de estado como um “orçamento do género”. Esta
foi uma medida fundamental para que o Kudumbashree conseguisse resultados sem
precedentes, aproveitando favoravelmente o apoio administrativo, político e
financeiro. O governo LDF fixou, inicialmente, o orçamento do Kudumbashree em
500 milhões de rupias, com juros de 4%, mais tarde reforçado para mil milhões
de rupias. Por sua vez os novos estatutos elegeram o Kudumbashree como o
organismo central de execução da Missão Nacional de Meios da Vida Rural (NRLM)
enquanto os membros do Kudumbashree representavam o autogoverno local, sendo
apenas superados pelos representantes eleitos pelo povo.
IV - O actual
governo direitista da UDF debilitou a capacidade institucional e cortou
substancialmente os recursos financeiros do Kudumbashree. Aumentou a taxa de
juro de 4% para 12% e emitiu um decreto que permite aos membros do Kudumbashree
a afiliar-se á ONG patrocinada pelo Partido do Congresso (o partido maioritário
da coligação) a Missão para o Desenvolvimento Sustentável Janasree, formada por
este Partido em 2008, como alternativa ao Kudumbashree. A derrota da LDF nas
eleições comunais de 2010 e nas eleições legislativas do Estado de Kerala em
2011, permitiu ao Partido do Congresso consolidar esta rede, embora a Janasree
não mobilize mais de 1 milhão de afiliados, mesmo depois da autorização
governamental que permite a dupla filiação.
Os parlamentares
estatais do Partido do Congresso, baseados num memorando assinado pelos
presidentes dos concelhos comunais da UDF, fizeram um apelo ao governo central
para substituir o Kudumbashree pelo Janasree, como o organismo executor da
NRLM, o que foi recusado pelo governo central, que alegou não ter o Janasree o
mesmo historial, nem capacidade de mobilização do Kudumbashree. Fracassados que
foram os intentos da UDF, o governo de Kerala aumentou o orçamento destinado ao
Janasree. Aprovou um financiamento de 149 milhões de rupias para o Programa de
Desenvolvimento Nacional Agrícola (RKVY) e criou a Janasree Microfin, um novo
sector da Janasree dedicado aos microcréditos, elegendo para sua directora uma
antiga implicada em escândalos financeiros relacionados com o microcrédito.
V - O
desenvolvimento descentralizado e participativo protege, mobiliza e insere os
sectores proletários da sociedade. A campanha Kudumbashree é um bom exemplo
disto. A AIDWA em Kerala jogou um papel decisivo nesta campanha ao mobilizar as
mulheres e inseri-las no processo de desenvolvimento.
Kudumbashree é
também um exemplo para aqueles que confundem desenvolvimento descentralizado
com despolitização. Este foi um projecto que permitiu as reivindicações do
género e de classe e foi uma luta política afirmada por um modelo
participativo. E foram também outras coisas a outros níveis.
Foi também a
primeira vez que milhares de mulheres de Kerala tiveram uma conta bancária e
foi a primeira vez que milhares delas tiveram lugar em assembleias. E foi pelo
Kudumbashree que adquiriram coragem para a luta que se impõe: a luta por um
mundo melhor.
Fontes
The Times of India,
September, 29. 2012.
Indian Journal of
Gender Studies
Kudumbashree
(2011): Annual Administration Report - 2009-2010, State Poverty Eradication
Mission,
Thiruvananthapuram.
Hyderabad
University, Political Sc Dep. Annual Report, 2012.
Kerala University,
Political Sc. Dep. Annual Report, 2011.
Poverty in
Kudumbashree and Kerala; BL Biju y Abhilash KG Kumar; Economic & Political
Weekly